domingo, 13 de março de 2016

Havia trem aqui

13/03 - Lucas Paraizo / Jornal de Santa Catarina


Francisca Tobias sorri quando lembra do trem. O apito da Maria Fumaça é como poesia e traz lembranças de uma época de vida mais simples em que esta era a maneira mais rápida e barata de se deslocar entre as cidades do Vale do Itajaí. Era também o sinal do progresso, da economia caminhando e um evento à parte, que reunia as crianças no quintal de casa para ver a locomotiva passar.

Dona Francisca, 70 anos, cresceu na localidade da Subida, em Apiúna, e quando criança era nos vagões do trem que viajava diariamente. Hoje ela mora na mesma região, em uma casa ao lado de um dos poucos trilhos remanescentes da sua infância. Mesmo com a Estrada de Ferro Santa Catarina (EFSC), que ligava Itajaí até o Alto Vale, em Agrolândia, desativada e em grande parte abandonada, o trem não é somente uma memória nostálgica para dona Francisca. Ela tem a sorte de ao menos uma vez por mês chamar os filhos, hoje crescidos, para ver uma Maria Fumaça preservada passar nos trilhos em Apiúna, em seu pequeno passeio de 2,5 quilômetros, dos 180 que a estrada já teve.

Há exatos 45 anos o trem da Estrada de Ferro Santa Catarina fazia sua última viagem, no dia 12 de março de 1971, para no dia 13 ser desativado oficialmente em um ponto final da história que durou mais de 60 anos. Inaugurada em 1909 num trecho inicial de Blumenau até Ibirama, a EFSC simbolizou a prosperidade econômica da região do Vale, mas encontrou sua decadência em meio ao avanço das rodovias e dos carros e caminhões. A história, no entanto, ainda sobrevive em dois mundos distantes: o dos apaixonados que mantêm viva a esperança de ouvir novamente o som nos trilhos e o do total esquecimento, em resquícios de estruturas abandonadas que compõem a paisagem pela região, apesar de muitas pessoas nem imaginarem que, décadas atrás, um trem passava por ali.

A última estação da EFSC, que tinha como objetivo unir a ferrovia do Vale com a linha de Lages e seguir para o Oeste catarinense, é hoje um sinal desta perdura. É difícil chegar à Estação São João, em Agrolândia, que na década de 1960 era a movimentada parada final do trem. Localizada na área rural do município, a estação é hoje um espaço abandonado e em ruínas no alto de um morro. 
Desativada em 1968, antes do restante da estrada, a parada ainda guarda fragmentos históricos, como o piso de azulejos coloridos de verde e vermelho, tomados pelos sinais do tempo e por pichações que mostram que hoje o local ainda é habitado, mas com objetivos diferentes dos de tempos atrás. Os trilhos já não existem mais – como na maior parte de toda a antiga ferrovia –, foram vendidos ou doados para um museu de Curitiba.

A estação de Agrolândia contrasta profundamente com a parada vizinha. Em Trombudo Central pode-se dizer que as chegadas e partidas da estação de trem foram substituídas pelo aconchego de uma casa. Se em São João o imóvel está desabitado, a parada de Trombudo hoje é morada para o casal Antero e Doralice Cordeiro, ambos de 67 anos. Há 35 eles compraram o terreno e moram na estrutura que antigamente foi a parada da EFSC na cidade. Preservado pelo casal, o local ainda tem sinais dos tempos de estação de trem: o nome “Trombudo Central” nas laterais, a marca da EFSC, as janelas originais e a grade da bilheteria dentro do que hoje é uma casa, além do piso original da estação. Do lado de fora, ao lado da rampa de embarque, ainda é possível ver falhas em forma de trilho no gramado.

– Quando eu tinha sete anos pegava o trem aqui para ir até Ibirama e outras cidades. Era muito bom quando tinha o trem. Nunca imaginei que um dia ia morar aqui – lembra Doralice, apontando a porta de casa, por onde muito tempo atrás ela passava para embarcar num vagão que poderia muito bem se chamar saudade.


Trilhos e pontes contornam a BR-470

Em Rio do Sul, no Alto Vale, é fácil encontrar três construções antigas que  lembram dos tempos em que a ferrovia passava por lá. Em uma, logo no Centro, funciona hoje o Museu Histórico Cultural, enquanto o antigo armazém usado pelos trabalhadores dos trens abriga a sede da Rede Feminina de Combate ao Câncer. Mas a história mais viva está no bairro Bela Aliança, na antiga Estação Ferroviária do Matador. Onde hoje é um centro cultural, segue preservado um trecho do trilho da ferrovia, assim como vagões antigos e detalhes como o sino usado para avisar que o trem estava partindo.

Ao descer o Vale os contornos do trem continuam presentes, seja em forma de pontes de ferro que antes suportavam o peso dos vagões que cruzavam o rio Itajaí-Açu ou em restos de trilhos que aguentaram a ação do tempo. Em Apiúna a estação principal no Centro da cidade foi pintada e hoje guarda da sua função original somente o formato da construção, que agora abriga uma igreja. O mesmo acontece em Blumenau, onde estruturas da época têm novos usos, como a antiga estação Blumenau, na Rua Martin Luther, que hoje é o imóvel de uma veterinária.

– Blumenau tinha potencial para criar um museu com muito da história da EFSC, mas houve um descaso com a memória da ferrovia que serviu a região por 62 anos – avalia o historiador e memorialista da ferrovia Luiz Carlos Henkels.

Um museu neste formato foi criado em Indaial, onde era a estação principal da cidade e que reúne um dos maiores acervos da ferrovia na região. A outra estação do município, no entanto, na região do Warnow, está abandonada.

Na parte mais nova da EFSC, que ia em direção ao litoral, a situação não é diferente. A antiga estação central de Itajaí foi demolida, enquanto a Estação Engenheiro Vereza, no bairro Itaipava, a primeira na cidade, continua viva como um pequeno museu. Logo atrás desta estação mora a dona Maria Rogge, de 73 anos, que nunca andou de trem mas deve muito de sua história aos trilhos da EFSC. Seu marido, Manuel Carlos Rogge, falecido há 28 anos, trabalhou por 33 na estrada de ferro em todas as estações, de Itajaí a Trombudo Central, substituindo profissionais que pegavam férias.

É também na estação do bairro Itaipava que Silvio João Wallner, 50, vizinho da dona Maria, tem memórias da infância. Ele costumava pegar o trem para voltar do Colégio Salesiano, onde estudava, até a Itaipava.

– Não é só nostálgico lembrar do trem, é uma memória muito boa. Pela rapidez, pela segurança. Era muito melhor que carro – lembra Wallner.

O historiador Luiz Carlos Henkels conta que a ferrovia teve importância vital no desenvolvimento econômico do Vale ao levar cargas e passageiros. No auge do funcionamento da linha, mais de 300 pessoas iam diariamente do Alto Vale para Blumenau com o trem, segundo Henkels:
– Nos anos 1970 desativaram a ferrovia por causa da precariedade dela, mas essa precariedade foi motivada pela falta de investimento, já que o foco do governo estava no asfalto. Gradativamente o caminhão tomou o posto do trem.



Maria Fumaça mantém memória viva

Dos 180 quilômetros que a ferrovia percorreu, hoje é possível passar por 2,5 quilômetros dela em uma Maria Fumaça restaurada vinda de Campinas (SP), da sede da Associação Brasileira de Preservação Ferroviária. O trajeto é feito em Apiúna e reacende a memória de turistas e moradores da região da Subida que podem, 45 anos depois, escutar o apito do trem e vê-lo passar. A locomotiva funciona uma vez ao mês, sempre nos domingos. Faz sete viagens por dia, cada uma com duração de cerca de 40 minutos num trajeto dentro de Apiúna, nas redondezas da Usina Hidrelétrica de Salto Pilão. A locomotiva tem capacidade para 108 pessoas e a passagem custa R$ 25 por pessoa.

– Quando começamos a média era de 800 pessoas por domingo. Hoje o número caiu para entre 200 e 300 – diz o historiador Luiz Carlos Henkels, voluntário do grupo.

A Maria Fumaça de Apiúna começou a funcionar em 2010, com investimentos da prefeitura e da Usina, mas precisou ser fechada em 2011 após danos de uma enchente. Em agosto de 2013 a locomotiva voltou a funcionar e opera até hoje com passeios mensais. Neste domingo o grupo fará o passeio especial em comemoração aos 45 anos da última viagem. O próximo está marcado para 10 de abril, com reservas e informações pelo telefone (47) 3644-5077.

Fotografia: Gilmar de Souza e Lucas Correia
Edição: Mariana Furlan
Design e Desenvolvimento: Maiara Santos